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Lendo Salinger ao som de Jupiter Maçã

Atualizado: 1 de jan. de 2021


Charles Burns

Giovani

Eu e Lana namoramos há 3 anos. Há 2 moramos juntos e há 1 ano as coisas já esfriaram completamente. Por isso há uns 3 meses resolvi instalar o Tinder com o pretexto de passar o tempo e acabei conhecendo uma garota chamada Sofia. Descobri que eu e ela tínhamos muito mais gostos em comum do que eu e Lana, que vínhamos arrastando essa relação. Não queria tomar a iniciativa de terminar com Lana porque a casa era minha e me sentiria péssimo de ter que fazer ela se mudar de casa. As coisas iam de mal a pior, com o tempo Lana foi se tornando desleixada, deixava roupas jogadas pela casa, não tampava a pasta de dente, assistia programas de culinária horríveis na tv. Sua depressão se agravou e voltou a tomar remédios. Por sorte quase não nos víamos. Lana passava a noite na faculdade de sociologia, e eu passava a tarde na agência. Já não havia mais nenhum afeto. Então marquei com Sofia um encontro em um bar conhecido por estudantes da região. Ela estava no primeiro ano da faculdade de publicidade e propaganda, tinha cabelo curto e moreno, rosto fino. Falei que ela parecia a Audrey Hepburn. “Amo a Audrey”, ela disse. Ouvia Jupiter Maçã e lia Salinger assim como eu e ainda ria das minhas piadas. Senti uma conexão anterior ao Big Bang. Depois passamos a nos encontrar na minha casa mesmo. Enquanto Lana estava na faculdade a noite, Sofia e eu ficávamos bebendo vinho, assistindo videos aleatórios no youtube e nos pegando. Dizia que me adorava e que queria morar comigo. Ela não sabia da Lana. Só ficou sabendo quando eu e Sofia fomos flagrados por ela no sofá, ambos sem camisa. Lana tinha voltado mais cedo porque um professor esqueceu de avisar que não teria aula por conta de um congresso. Quando abriu a porta e nos pegou não parecia triste nem revoltada, mas não pôde deixar de disfarçar a expressão de desgosto. Foi até o quarto e se trancou lá. Sofia foi embora e eu dormi na sala. No dia seguinte, Lana empacotou suas coisas e também foi embora, sem falar nada, nem olhar na minha cara. Deixou um monte de coisas para trás.


Lana

Giovani é um idiota, precisei de 3 anos para perceber isso, o que me faz sentir patética. Era um desses caras que te impressiona pela bagagem cultural e por parecer saber de tudo, mas que no fundo todo esse repertório é só uma tentativa de preencher um vazio. A depressão me acompanhou a vida toda, mas quando o conheci estava em um dos momentos mais depressivos da minha vida. Conheci o Giovani em uma feira perto da casa dele, ele se aproximou fazendo comentários sobre como escolher maracujá enquanto eu escolhia frutas. Só tomando muito antidepressivo pra cair num papinho desses. Desleixada? Eu era a única que varria a casa e lavava a louça. Se não fosse por mim ele viveria na imundisse, a única coisa que ele fazia era tirar o pó dos livros do Salinger e dos discos de um tal de Jupiter Maçã. Tive medo do término. Não quis encarar os fatos e apenas me acomodei. Com muito esforço ia pra faculdade só pra me forçar sair de casa. Giovani se mostrou indiferente, sempre desconfiei que ele achava que era frescura minha. Quando peguei ele com aquela garota que acabou de sair do ensino médio no sofá, aqueles quatro olhos arregalados olhando para mim, um filme com todas as escolhas erradas que fiz passou pela minha cabeça, desde o curso da faculdade, os empregos, as amizades. Os homens. Uma vida dedicada à escolhas erradas. Imaginei onde eu estaria agora se eu não tivesse dado atenção pro cara que vinha falar comigo na feira, talvez estaria em uma casa em frente a praia ou morta em um acidente de avião. Essas ramificações de possibilidades que se abrem a cada escolha mínima que a gente faz. Desejei com todas as minhas forças que os dois explodissem ali mesmo, num fogos de carne humana. Então fui pro quarto e me enchi de calmantes e remédios para dormir torcendo em não acordar no dia seguinte.


Sofia

Quando conheci o Giovani tinha acabado de sair de um namoro de colegial, daqueles que a gente acha que vai durar para sempre. Comecei a sair com uma galera do Tinder. Giovani era bacana e tal, mas um pouco invasivo às vezes, mas no geral era bacana. Trabalhava em uma agência e como eu tinha acabado de entrar na faculdade de publicidade achei poderia me abrir algumas portas. Claro que ele não era o único com quem eu saía, fora as ficadas aleatórias das festas da faculdade e tal, mas logo senti que para ele não era algo só casual. Ele vivia mencionando referências culturais que eu dizia que conhecia só pra não parecer uma ignorante total. Quando ele falava do Júpiter Maçã a única coisa que passava pela minha cabeça era o planeta Júpiter e uma maçã, e só. Qualquer comentário dele eu já emendava um: “Nossa, sim… genial!”. Vivia me chamando de bonequinha de luxo, até que um dia eu falei “bonequinha é a mãe!”. Ele riu sem graça e nunca mais me comparou com essa tal de Audrey. No primeiro encontro no bar, depois de umas biritas, ele mencionou que estava em um relacionamento com uma garota meio depressiva. Nana ou Lana, algo assim, mas que já estava praticamente acabado e tal. Mas nem passava pela minha cabeça que eles morassem juntos. Tadinha, só de pensar. Quando ela apareceu na sala aquele dia, tomei um susto. Achei que fosse alguma moradora do prédio que errou o apartamento, cada coisa que a gente pensa. Depois logo caiu a ficha, achei que ela ia armar algum escândalo, mas nada. Agiu como uma pedra, mas não disfarçou o rosto inchando de lágrimas. Peguei minhas coisas e mandei enfiar esse Salinger no cu. Acho que ele ficou meio obsessivo, começou a mandar muitas mensagens e me ligar, às vezes tinha a impressão que eu tava sendo seguida e tal, mas pode ser só paranoia minha. Coitada da menina, Nana né? A gente tem uma certa responsabilidade com as pessoas, principalmente as mais deprimidas. Mas até que ponto a condescendência pode ajudar ou atrapalhar, isso eu não sei. Mas por que eu tô te contando isso mesmo?

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